quinta-feira, 23 de outubro de 2008

É doce nascer no mar ...

Natal, 23/10/2008.

Depois de tantos eus, um pouco de outros, eus externos. Viver é assimilar as palavras que entram em nós e passam a nos compor, recompor, decompor. Estar passa a ser uma palavra constante em quem descobre que estando, está. E vamos todos estando o que está restando ... vivemos e revivemos os conceitos dos quais estivemos longe, dos quais nos afastamos e dos quais extraímos nossa essência.
Lembro-me de tempos em que a amargura era algo que estava sempre ao meu lado, em que a vida olhava-me de soslaio e deixava-me a sua margem. Assim, duplamente compreensível, estar a sua margem ou receber da vida, não sua essência, mas apenas a sua margem.
Tudo isso passou.
Passou com os cabelos brancos que chegaram, passou com os quelomas que se somaram a mim e que me fazem quelomas vivos de um eu quelomado. A vida foi, em alguns momentos, quilombo. Um quilombo em que me reclui para não sentir a presença dos capatazes que rondavam minha liberdade negra.
E isso passou.
Passou como passam todas as coisas, como passam os pássaros feridos, como passam as feridas. E eu, então, passei a estar.
Estar livre dos medos dos capatazes, estar livre das descompreensões ou recriminações da negritude de minha essência, estar livre de estar livre ... restou o que me resta, eus intercalados de mar, eus cercados de mar ... aqui.
Mudar-me para esta cidade mudou-me ... trouxe comigo o que sempre quis ter e aqui perdi para recobrar um eu que é parte do que quis e parte do que quiseram que quisesse ... eus completos de si.
Ponto.
Agora, é estabelecer as poucas outras coisas que ainda faltam nas faltas que sinto. É ter comigo e com os outros migos que se somam a mim e sentir todos os eus em mim mesmo. Já estou neste patamar ... e até aqui, o mar é o fim das patas ... lanço minhas patas na areia fina que recobre a margem para ver minhas patas adentrarem o mar ... e ser selvagem marinho. Não espero mais acontecimentos ... eles acontecem, assim, por si ... como se soubessem que deles precisava para poder entender o ser estranho que habita todos os seres entranhos da existência humana. Aqui estou eu mesmo.
Neste exato momento parece que nada sobrou ou foi pouco, parece que tudo foi a exata medida da necessidade sobre a qual qualquer conhecimento profundo era ignorado. Os desesperos que compuseram a existência minha tornaram-se essenciais para que este eu pudese estar agora estando aqui contigo que me lê. E que lê a si, nos interstícios de você e de mim ...
São essas as palavras que ascartasquevocenuncaescreveuparamim precisavam expressar ... essas palavras que dizem que os elementos da vida são da vida e ponto, sem tergiversações ... ler as palavras azuis ditas sem mais intimidade foi mais reconfortante do que receber flores no dia do velório ... porque percebi marcas de esperanças azuis na vida negra do quilombo ... e intercalei nos significados outros significados, antes percebidos, agora perseguidos ... sem desespero.
Já tenho dito aqui que desespero. É verdade. Desespero porque faço minha parte para que o que espero seja aqui deixado pelo destino que sopra brisa quente por narizes diversos e derrama palavras líquidas por bocas ainda mais diversas ... bocas que se apresentam com ou sem esperança, mas apresentam-se de qualquer forma. Estão lá e a cá se achegam para derramar minutos líquidos de afeição e de esperança ... para tergiversar depois. Não ligo ... ou ligo e não percebo que ligo. Mas se não percebo, é porque não ligo mesmo, então, vou estando sem ligar ou ligando sem estar .... e daí?
Só sei que foi assim ...
Renasci em voltar a ir ao cinema como fazia no quilombo ... e não estava mais no quilombo .... que bom. O quilombo tornou-se em mim Dubá natalense do nordeste. E eu estava lá ...na transformação, na transcendência ... na essência ... e nem ligo para sua origem sal dita. Ouço sais e transformo-os em mel (às vezes com agrião para dar um amarguinho e sarar a garganta que devolverá não mais sais salgados, mas sais calmantes de banhos de boticário ...) e em mel nado.
Nadar no mel, melnadar ... assim, feliz com os poucos amigos que terei em meu velório e com as muitas bocas que se encontram liquidamente com os sais boticários ...
Imediatamente, nesses momentos, arranco a grinalda de hera para que os cabelos possam sentir brisa quente ou fria soprada de qualquer lugar ... não importa mais ... simplesmente porque o que me comporta são portas abertas à brisa que sopra e adentra as minhas entranhas estranhas a tudo que não lhe é intrínseco ... a tudo que lhe é extrínseco ... até que adentre e se torne, naturalmente, intrínseco ... mas não seco ...
Ao contrário ...úmido... tórrido ...
E assim vou estando em mar ... mar de inúmeros eus parte ilhados, de eus partilhados, de eus nossos ... meus e teus ...
E o que resta?
Resta ser capaz de olhar pela fresta e sentir a brisa ... de dentro, porque sou portas abertas às brisas externas. Não sou quarto fechado.
Sou varanda,
alpendre ... em que se tem todas as coisas boas: a casa adentro, próxima, repleta de portas a serem invadidas – que mantenho abertas – e que recebe toda a externidade eterna, todas as brisas quentes e frias sopradas por narizes os mais diversos e que a todo instante é molhada por palavras líquidas derramadas por bocas que vou recolhendo pelo caminho.
Sou aberto, por certo ... e te espero livre ... livre varanda à beira mar, que renasce a cada tempestade, porque renascer é a essência do meu ser ... que pode estar seu.
Ou não.

Um comentário:

  1. Querido Silvio,
    depois dessa leitura,com a sua permissão, farei algumas colocações de cunho pessoal: espero ter esta liberdade e conseguir expressar-me com sinceridade e clareza.
    Suas palavras são livres e descompromissadas. Vejo tambem a imaginação, jogos de palavras e trocadilhos criativos.Já o texto,especificamente de um blog, a leitura poderia ser mais rápida e facilitada: podendo ser dividida em partes ou temas.Sendo assim, facilitaria a compreensão e daria margem para instigar ao leitor uma analise e consequentemente a resposta.
    O texto significa, o meio intermediario pelo qual as duas consciencias se comunicam.
    Aquele abraço e foi um prazer...
    nos vemos,
    emanuel/mineiro

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